Thomas Mann prevê a caótica situação do planeta a quase cem anos


arte RAY COSTA


Segue um trecho retirado do livro “A Montanha Mágina” (Der Zauberberg em original alemão) de Thomas Mann (1875-1955) publicado em 1924. É impressionante pela atualidade de seu assunto. Confira.
“...Em conseqüência do seu caráter complacente, o bom Hans Castorp estava predestinado a receber as confidências de vários dos seus companheiros que se achavam possuídos de alguma idéia fixa e sofriam por não encontrar na maioria leviana dos pensionistas pessoas que os quisessem ouvir. Um antigo escultor, natural de uma província da Áustria, homem de certa idade, com um bigode branco, nariz adunco e olhos azuis, concebera um projeto político-financeiro, que caligrafia, sublinhando os trechos decisivos com pinceladas de tinta nanquim. Esse projeto tinha o seguinte objetivo: cada assinante de jornal deveria ser obrigado a entregar no primeiro dia de cada mês uma quantidade de papel de jornal velho que correspondesse a quarenta gramas por dia. Isso importaria anualmente em cerca de 1400 gramas, e em vinte anos em nada menos de 288 quilos, os quais, à base de um preço de 20 pfennigs por quilo, representaria um valor de 57,60 marcos. Cinco milhões de assinantes – assim prosseguia o memorando – entregariam, portanto, em vinte anos a soma formidável de 288 milhões de marcos, dois terços da qual poderiam ser deduzidos das assinaturas, ao passo que o resto, aproximadamente cem milhões de marcos, seriam aproveitados para fins humanitários, como, por exemplo, o financiamento de sanatórios populares para tísicos, subvenções para talentos, pobres, etc. O plano estava elaborado em todos os pormenores. Não faltava uma coluna que permitia ao funcionário encarregado de recolher mensalmente o papel, verificar o valor do mesmo pela altura da pilha. Havia formulários perfurados para servir de recibo. Era um projeto sólido e fundado sob todos os aspectos. O gesto insensato e a destruição de papel de jornal, que gente mal-avisada ainda desperdiçava em cloacas ou fogões, constituía alta traição às nossas florestas e um golpe contra a economia nacional. Poupar papel, guardar papel, significaria conservar e economizar celulose, árvores, máquinas, que a fabricação de pasta mecânica e de papel desgastava, como também seriam menos exigidos o capital e o material humano. Acrescia a isso o fato de o papel de jornal velho adquirir facilmente o quádruplo valor pela transformação em papel de embrulho ou em papelão, de maneira que seria capaz de se converte num fator econômico de vasta importância em fundamento de rendosos impostos estaduais ou municipais, ao passo que os leitores de jornais veriam as suas contribuições aliviadas. Numa palavra, o projeto era bom, era em realidade, inatacável, e se no entanto tinha algo de sinistra ociosidade e mesmo de obscura tolice, era somente por causa do fanatismo excêntrico com que o ex-artista defendia e apregoava uma idéia econômica, exclusivamente esta e mais nenhuma, apesar de levá-la, evidentemente, tão pouco a sério no fundo do seu coração que não fazia a menor tentativa para realizá-la...Sacudindo a cabeça obliquamente inclinada, Hans Castorp escutava as exposições do homem, cada vez que este, com palavras febrilmente exaltadas, propagava a sua idéia de salvação. Ao mesmo tempo o jovem analisava a natureza do desdém e da repulsa que o impediam de tomar o partido do inventor contra a indolência do mundo.”